Reflexões

"O historiador"
Veio para ressuscitar o tempo
e escalpelar os mortos,
as condecorações, as liturgias, as espadas,
o espectro das fazendas submergidas,
o muro de pedra entre membros da família,
o ardido queixume das solteironas, os negócios de trapaça, as ilusões jamais confirmadas
nem desfeitas.
Veio para contar
o que não faz jus a ser glorificado
e se deposta, grânulo,
no poço vazio da memória.
É importuno,
sabe-se importuno e insiste,
rancoroso, fiel.
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
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"O google é ao mesmo tempo, um poderoso instrumento de pesquisa histórica e um poderoso instrumento de cancelamento da história. Porque, no presente eletrônico, o passado se dissolve".
Carlo Ginzburg, em Conferência no Brasil - nov/2010.
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“Que tipo de ideia podemos formar de uma época se não vemos pessoa alguma nela? Se só pudermos fazer relatos generalizados, vamos apresentar apenas um deserto que chamamos de história” Huizinga, século XIX
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Antigamente
HAVIA OS QUE tomavam chá em criança, e, ao visitarem família da maior consideração, sabiam cuspir dentro da escarradeira. Se mandavam seus respeitos a alguém, o portador garantia-lhes: “Farei presente.” Outros, ao cruzarem com um sacerdote, tiravam o chapéu, exclamando: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”; ao que o Reverendíssimo correspondia: “Para sempre seja louvado.” E os eruditos, se alguém espirrava – sinal de defluxo – eram impelidos a exortar: “Dominus Tecum.” Embora sem saber da missa a metade, os presunçosos queriam ensinar padre-nosso ao vigário, e com isso punham a mão em cumbuca. Era natural que com eles se perdesse a tramontana. A pessoa cheia de melindres ficava sentida com a desfeita que lhe faziam, quando, por exemplo, insinuavam que seu filho era artioso. Verdade seja que às vezes os meninos eram encapetados; chegavam a pitar escondido, atrás da igreja. As meninas, não: verdadeiros cromos, umas tetéias. ANTIGAMENTE, certos tipos faziam negócios e ficavam a ver navios; outros eram pegados com a boca na botija, contavam tudo tintim por tintim e iam comer o pão que o diabo amassou, lá onde judas perdeu as botas. Uns raros amarravam cachorro com lingüiça. E alguns ouviam cantar o galo, mas não sabiam onde. As famílias faziam sortimento na venda, tinham conta no carniceiro e arrematavam qualquer quitanda que passasse à porta, desde que o moleque do tabuleiro, quase sempre um “cabrito”, não tivesse catinga. Acolhiam com satisfação a visita do cometa, que, andando por ceca e meca, trazia novidades de baixo, ou seja, da corte do Rio de Janeiro. Ele vinha dar dois dedos de prosa e deixar de presente ao dono da casa um canivete roscofe. As donzelas punham carmim e chegavam à sacada para vê-lo apear do macho faceiro. Infelizmente, alguns eram mais que velhacos: eram grandessíssimos tratantes. (...) MAS TUDO ISSO era antigamente, isto é, outrora. 
Carlos Drummond de Andrade
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"Se queres transformar-te num homem de letras, e quem sabe um dia escrever Histórias, deves também mentir, e inventar histórias, pois senão a tua História ficaria monótona. Mas terás que fazê-lo com moderação. O mundo condena os mentirosos que só sabem mentir, até mesmo sobre coisas minímas, e premia os poetas que mentem apenas sobre coisas grandiosas".
Umberco Eco, Baudolino.
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"O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força que aí detinham o poder. (...) O documento não é inócuo. É antes de mais nada o de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento (...) que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados desmistificando-lhe o seu significado aparente. O documento
é monumento". 
Le Goff, 1984, p.102-103.
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"Há duas coisas no mundo verdadeiramente fatigantes: ouvir um tenor célebre e conversar com pessoas notáveis. Eu tenho medo de pessoas notáveis. 
João do Rio - 1904.
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"Há que se reverenciar e defender as capelinhas toscas, as velhices dum tempo de luta e os restos de luxo esburacado que o acaso se esqueceu de destruir."
Mário de Andrade, 1936.
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"Podem arrasar as casas, mudar o curso das ruas; as pedras mudam de lugar, mas como destruir os vínculos com que os homens se ligavam a elas? [...] À resistência muda das coisas, à teimosia das pedras, une-se a rebeldia da memória que as repõe em seu lugar antigo."
Ecléa Bosi.
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"A destruição do passado - ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas - é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso, os historiadores, cujo ofício é lembrar o que os outros esqueceram, tornam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milênio." 
Eric Hobsbawn.
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