segunda-feira, 31 de maio de 2021

A Rua da Lindeza

 ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 25 DE MAIO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS   

            No início, ela tinha o nome de Rua do Comércio, ainda no final do século XIX. Não demorou muito e seu nome mudou para Rua Prudente de Moraes. Foi em 1915, no entanto, que as ruas em Barretos passaram a ser denominadas com números pares e as avenidas ímpares, e, deste modo, ela passou a ser chamada de “Rua 14”. Mesmo assim, seu nome era para ter sido outro – e por pouco não o foi: a Rua da Lindeza.

            É Osório Rocha quem conta sobre a Rua da Lindeza, em páginas esporádicas de seu Barretos de Outrora. Exemplifica que, repetidas vezes, ela chegou a ser assim registrada em escrituras de cartório. Popularmente, a rua 14 era conhecida desta forma pois era muito linda e tinha se tornado a via pública mais importante da cidade, desbancando, inclusive a Rua 8 (que tinha se formado primeiro). Os motivos para tal não eram somente seus casarões e palacetes, mas a imponência do Colégio São João, os cartórios ali estabelecidos, bem como hotéis, clínicas médicas, farmácias e comércio de fino trato. Ademais, era ali que se fixavam os instrumentos de cultura e recreação, como a Sociedade Instrução e Recreio, a redação de “O Sertanejo”, a primeira sede do Grêmio Literário e Recreativo, o salão musical da Euterpe e outros.

            Foi a rua em que se estabeleceu a primeira sede da Intendência Municipal (prefeitura), além de ter sido o destino, na primeira oportunidade da Câmara Municipal, de 20 lampiões como melhoramento ao local. É claro que com o passar das décadas, outros comércios e residências se estabeleceram com construções arquitetônicas variadas. O sobrado da família Nogueira, onde funcionou o Banco de Barretos, à esquina da 23, e a casa do jornalista Emílio José Pinto, junto a outros casarões de encher nossos olhos de beleza, são as edificações que ainda resistem por ali.

            Se no começo do século XX, com parcos recursos urbanos, ela já era uma lindeza, imagine com o contar das décadas? (Mesmo quando perdeu seus paralelepípedos). Que a Rua da Lindeza permaneça conservada!

Vozes da escravidão

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 18 DE MAIO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS   

            Apesar de ser um processo histórico nacional, a escravidão no Brasil foi tratada de forma distante e genérica, onde os escravizados eram sumariamente classificados como “africanos” (ignorando suas tribos), e seus costumes, valores e crenças, assim como a sua história violenta, foram traduzidos a relatos superficiais. As áreas rurais e urbanas brasileiras se constituem nos verdadeiros locais de memória da escravidão, remendando histórias que, mesmo com o contar dos anos, tornam este processo mais íntimo, próximo e real. Assim é com Barretos, arraial que se formou oficialmente em 1854, vivendo pelo menos 34 anos de escravidão institucional.

            Osório Rocha, em seu “Barretos de Outrora”, é quem melhor registrou depoimentos sobre os escravizados na cidade. Mesmo com poucos relatos, por ali é possível identificar que grande parte deles vinha de Minas Gerais, apesar de nascidos na África. Sobre isso, ele notou as cicatrizes que alguns possuíam na face, as quais receberam desde criança em suas tribos de origem. Osório identificou dois tipos delas: alguns com “verrugas no queixo, na ponta do nariz e sobre este à testa formavam uma cruz”, e outros da etnia “Monjolo” que “em vez dessas saliências, apresentavam cicatrizes nas duas faces, da boca às orelhas, paralelas retas, feitas à faca”.

            Dando vozes a Mãe Mina, Policarpo Balbino, Venância, Júlia, Alexandre, Mãe Tória, Felipe, Antônio e Rita Bagagem, Osório registrou histórias que transparecem a violência da imposição da fé dogmática, do castigo, da vil separação de mães e filhos e de escravizadas que passavam a vida procurando seus bebês. Mostrou mais, que após a Abolição muitos ex-escravizados foram morar no bairro periférico de Barretos, o “Outro Mundo”, levando a vida na informalidade e na pobreza.

            É triste, mas é a nossa realidade. Nossa. Somos a sucessão daquele passado, que é longe de ser um lugar bonito. (Rita Bagagem, quando menina, entrou por curiosidade num navio negreiro e não conseguiu mais sair. Dá para acreditar?).

As cigarras precisam cantar

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 11 DE MAIO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS  

            É outono. Segundo a fábula do escritor La Fontaine, recontada no século XVII depois da versão original do grego Esopo, a cigarra canta no verão, enquanto as disciplinadas formigas trabalham para garantir uma boa passagem no inverno. Essa fábula, imersa na lógica capitalista, eternizou a figura da cigarra como preguiçosa, já que, ao invés de trabalhar como as incansáveis formigas, ela (só) cantava em cima das árvores e quando chegou o inverno ela correu a pedir abrigo às trabalhadoras. Dada a distância do tempo e da mentalidade, essa versão começou a ruir, visto que o canto das cigarras passou a ser considerado uma forma de trabalho, de entretenimento e de arte. Era a cigarra que trazia a alegria ao verão, era de sua natureza cantar e encantar.

            O fato é que cigarra é cigarra, e formiga é formiga. A natureza delas é diferente, e não há de se esperar de ambas uma atitude em comum. O mundo precisa do (en)canto das cigarras e La Fontaine sabia disso. Não só ele. Coelho Netto, escritor maranhense, ao visitar Barretos em 1920, deixou registrado no livro de visitantes do Grêmio que a casa gremista era uma “árvore de sombra amena” onde os homens, depois de um dia de trabalho, podiam recolher-se e lá ouvir o canto das cigarras. Poetizou, ainda mais, dizendo que as cigarras “eram os poetas que cantavam nas folhas dos livros”.

            Exatos cem anos depois, em 2020, nas comemorações dos 110 anos do Grêmio, eu, historiadora, voltei à mensagem de Coelho Netto, despindo dela a fábula do francês La Fontaine, para me inspirar e dali escrever meu livro “De onde cantam as cigarras”. O livro que analisa a origem do Grêmio em 1910 e a maneira como ele se tornou uma instituição de tradição em 1945, se cruza com a história cultural da cidade.

            No ano passado, a pandemia não permitiu o lançamento presencial, e, em 2021, a mesma situação exige medidas restritivas para a noite de autógrafos que acontecerá no dia 12. No entanto, as cigarras precisam cantar, mesmo que seja outono e que seu canto esteja um tanto escondido pela máscara. Afinal, o verão se aproxima.

99 de Jorge!

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 4 DE MAIO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS   

            Que me desculpe Silvestre deu Lima e a sua perspicaz intelectualidade, que me perdoe a sagacidade do Cel. Almeida Pinto e que não me ouça o Cel. Jesuíno de Mello, nem o juiz Joaquim Fernando de Barros – todos viventes em Barretos e donos de uma poderosa escrita - mas, quando me pedem para eleger um ilustre intelectual na história da cidade, meus dedos correm a digitar: Jorge Andrade, barretense. Não por acaso, na virada do mês de maio, lembrei-me dele, de sua figura junto à máquina de escrever, já que no dia 21 ele completaria 99 anos. A mim, maio profetiza Jorge Andrade.

            Não consegui esperar o dia 21, precisei correr às teclas para lembrar a todos os 99 de Jorge. Ano que vem, em seu centenário, ele certamente receberá as mais justas e belas homenagens, mas quis me adiantar. Alguém que sai da aristocracia interiorana, entra à dramaturgia depois ter sido aconselhado pela diva Cacilda Becker e que teve sua primeira peça como marco inicial na carreira da (também diva) atriz Fernanda Montenegro, merece ser lembrado e reverenciado.

            A sensibilidade de Jorge Andrade é traduzida em seus textos através de uma crítica social certeira, que de maneira inteligente denunciava as questões sociais e políticas de um Brasil interiorano, esquecido e renegado. A tríade “A Moratória”, “Veredas da Salvação” e “Pedreiras das Almas” é um retrato da História do Brasil, em complexas fases, a ponto da composição dos personagens, a movimentação das cenas e o texto sincero ser confundido com a própria realidade do que de fato aconteceu. Para um historiador, é nítido o quanto Jorge conhecia profunda e criticamente o passado brasileiro a ponto de exprimir uma dramaturgia que grita, que não desmerece a inteligência de quem assiste, ao contrário, eleva à reflexão a assuntos superiores.

            O texto de Jorge nos convida ao conhecimento do que (e o porquê) os brasileiros nunca conseguiram ser. Sua máquina datilográfica parece ainda ressoar, é atemporal. Enquanto Barretos existir, Jorge será lembrado. Viva os seus 99!

A tal mentalidade

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 27 DE ABRIL DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS  

            Os jornais e livros antigos sobre Barretos revelam muito mais do que aparentam; deixam escapar desabafos e indignações. Neles, uma característica sempre me chamou a atenção: o uso das expressões “mentalidade bovina”, “bovinismo” e “mentalidade de cimento armado”. A última foi grafada, em tom de desabafo, pelo escritor Osório Rocha em seu “Barretos de Outrora”, e a primeira encontra-se em algumas edições da imprensa, especialmente o “Correio de Barretos”.

A tal “mentalidade bovina” é uma inteligente metáfora usada para descrever o conservadorismo de certas classes barretenses – em principal, parte de uma poderosa elite – que, avessas às mudanças, engessavam processos que poderiam trazer novidades, modernidade e abalar a ordem social. A intenção dos adeptos ao bovinismo, portanto, era não apoiar iniciativas “ousadas” em nome de moralismo (ou de nada).

            Como exemplo, dois episódios interessantes denunciam a tal mentalidade bovina, ambos envolvendo a Educação em Barretos. O primeiro, em 1931, a partir da criação do Ginásio Municipal de Barretos, cuja instalação foi encabeçada por Osório Rocha com a “Sociedade Escolas de Barretos”. Na época, existiram figurões que foram contrários à criação da primeira escola secundária de Barretos; para eles, quem quisesse estudar depois do 4º ano, a opção seria Bebedouro. Em situação parecida, pulando para 1964, a origem da Fundação Educacional de Barretos, a primeira instituição de ensino superior na cidade, também passou intemperes do bovinismo (somado a rivalidades políticas), que achava desnecessária e impossível a vinda de professores de “tão longe”.

            Tratando-se de Barretos, a tal mentalidade foi denominada “bovina” em alusão à pecuária e ao gado tangido, imortalizando uma característica da nossa própria origem. O problema foi a perpetuação dessa mentalidade ao longo das décadas e, pior, na contramão das ações intelectuais modernas e de projetos tão sólidos como a Educação. E não é de se espantar que ela ainda apareça por aqui. Habemus.



Jornalistas e a Política (Parte II)

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 20 DE ABRIL DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS  

            Foi em 15 de agosto de 1947 o crime contra a vida do jornalista José Eduardo de Oliveira Menezes, que, além de ser diretor do jornal Correio de Barretos, era pai e esposo. Um crime que chocou a cidade, já que havia a esperança do redator sobreviver, porém, no dia 21, ele não resistiu. As fotos do seu funeral revelam a importância do jornalista na cidade, visto a quantidade de pessoas e homenagens.

            José Eduardo mostrava-se como um jornalista preocupado com o memorialismo, produzindo em seu “Correio de Barretos” séries de biografias e notas sobre os tempos idos. Teve uma importante passagem pelo Grêmio Literário e Recreativo, revelando-se como um dos pioneiros na criação de uma história da cidade e era um eterno admirador da arte da sua irmã, a pianista Haydée Menezes (cuja carreira promissora foi interrompida pelo luto do irmão). Foi autor do livro “Caretas do Zé Menêis e outros bichos careteiros”, de 1933, onde expôs 50 caricaturas de personalidades da cidade em enigmas bem-humorados. Por ali já se notava seu ar polêmico, satírico e político.

            O assassinato de José Eduardo, assim como os atentados contra outros jornalistas no começo do século XX, traduzem o aparelhamento político e a violência extrapolada que perdurou por décadas em Barretos. Por outro lado, a grande quantidade de jornais circulantes na cidade e a relativa duração deles, mostram que o jornalismo resistiu; apesar de tantos pesares. Mesmo tais jornalistas serem carregados de intenções políticas, era pelo jornal que chegavam as notícias do país e do mundo, as opiniões novas, os folhetins literários, as instruções sanitárias, os editais públicos, enfim, uma gama de novidades que tentavam se sobrepor ao tradicionalismo dos ares pura e secamente sertanejos.

            Os jornais antigos têm muito ainda a nos anunciar, a começar pelos personagens que os produziam, os jornalistas. Amareladas e empoeiradas, aquelas páginas - outrora datilografadas por eles - esperam muito de nós. (fim).

 

Jornalistas e a Política (Parte I)

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 13 DE ABRIL DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS  

            Abril é o mês de comemorar o Dia do Jornalista, dia 7, e, ao percorrer a nossa história, verifica-se que Barretos já se serviu de um considerável número de jornais e jornalistas. Dezenas de periódicos tiveram vida curta no início do século XX, fato que não os torna menos importantes, porém, os jornais mais conhecidos, por sua longevidade, foram: O Sertanejo, Correio de Barretos, Diário de Barretos e A Semana. Nestes, seus redatores não possuíam formação como jornalista, eram, em sua maioria, advogados, poetas, professores, engenheiros, médicos e políticos. Tinham o dom da escrita, trabalhavam nas redações adquirindo experiência e produziam folhetins publicáveis a cada sete ou dois dias (foram poucas as experiências de jornal diário).

            Grande parte dos jornais era usada para conteúdo noticioso e político. O Sertanejo, por exemplo, era órgão do Partido Republicano Paulista e foi disputado entre os líderes políticos dos anos 1900: Silvestre de Lima e Antônio Olympio Rodrigues Vieira. Em sentido parecido, jornais como A Tribuna e O Popular eram visíveis inimigos políticos, publicando denúncias um contra o outro, uma vez que eram dirigidos por correligionários de novos rivais: Antônio Olympio e Riolando de Almeida Prado.

            O aparelhamento político dos jornais extravasava as linhas de denúncias e calúnias para agressões e até mortes. Não foram poucas as vezes que jornalistas/políticos escandalizaram denúncias de ameaças e atentados em momentos de tensões, tais como Silvestre, João Machado de Barros, Antônio Olympio, Emílio José Pinto, Raymundo Mariano Dias, Antonio Viotti e outros. No entanto, o caso mais conhecido vem do ano de 1947, quando, em agosto, no Bar Jaú, o jornalista e diretor do jornal “Correio de Barretos”, José Eduardo de Oliveira Menezes, foi assassinado por Benedito Realino Correa. O motivo? Segundo o registro oficial da época, foi o fato de José Eduardo ter escrito um artigo em seu jornal dizendo que Benedito era conhecido entre os seus amigos como o “Fecha Roda”. Por que será? (continua).

A espada pela democracia!

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 6 DE ABRIL DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS  

            Assim como a história da República, a trajetória do exército no Brasil é interessante.  A partir da Guerra do Paraguai (1864-1870), o exército brasileiro ganhou força, se estruturou e passou a integrar o cenário público como o órgão responsável pela segurança nacional e pela garantia da lei, da ordem e da Constituição. Duque de Caxias, o militar que desde a época do Império criou uma imagem de pacificador e a figura mais importante no comando militar, tornou-se patrono da instituição em 1962; sendo que, desde 1925, o seu aniversário, 25 de agosto, era celebrado como o Dia do Soldado.  

Especialmente durante a Primeira República (1889/1930), a notabilidade do exército ultrapassava as fronteiras dos quartéis, uma vez que militares como Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto e Hermes da Fonseca assumiram a presidência do Brasil em momentos decisivos (o último, eleito em uma campanha polêmica). As Três Armas, ainda, atuaram em conflitos civis e militares a mando do próprio governo brasileiro, como Canudos, Revolta da Armada, Revolta da Chibata, Contestado, Revolta Paulista e outros. Apesar de ser regra o não envolvimento político e ideológico do exército desde a Constituição de 1891, o que a história republicana mostra é a participação de alguns de seus membros de forma direta em decisões de governo. Todavia, a atuação do exército enquanto instituição, isto é, não necessariamente dos seus membros individuais, foi tanto para a prática de conspirações contra a democracia, quanto para a sua proteção. Generalizar a atuação do exército brasileiro em única via é um equívoco, sua história coleciona vitórias, derrotas, guerras, intervenções e diversas características.

Em outras palavras, se, por um lado, o exército presenciou golpes de Estado, por outro, impediu com que alguns acontecessem. Sobre a primeira situação, as Forças Armadas já se envolveram na derrubada de regimes constitucionais (não obrigatoriamente democráticos), como o caso do golpe republicano em 1889, a Revolução de 1930, a saída de Vargas em 1945 e o Golpe de 1964, o qual implantou uma ditadura militar no Brasil por 21 anos. Neste último exemplo, a sensação de clamor popular - aliada ao contexto internacional da Guerra Fria e ao apoio de políticos e da elite industrial - foi o aval civil para o rompimento democrático pelas Forças Armadas.

No entanto, a via legalista é tradição no exército e, apesar de significativos os episódios em que militares autoritários lideravam a instituição, conhecer a atuação do exército para a salvaguarda da democracia brasileira é essencial. O exemplo principal vem de 1955, ano marcante por ser posterior ao suicídio do presidente Getúlio Vargas e ser o ano de eleições e transição a um novo governo. No final do ano de 1954, o governador de Minas Gerais, Juscelino Kubistchek de Oliveira (JK), lança-se como candidato à presidência do Brasil pelo PSD. Em abril de 1955, fez-se a dobradinha PSD-PTB com a candidatura do político gaúcho João Goulart (Jango), ex-Ministro do Trabalho de Vargas, como vice de Juscelino. Essa aliança não era bem-vista pela direita conservadora do país, representada especialmente pela UDN, por contextos anteriores. Em 3 de outubro de 1955, Juscelino venceu as eleições com 36% dos votos, contra 30% de Juarez Távora e 26% de Ademar de Barros. No entanto, os setores mais conservadores, capitaneados pela UDN, deram início a uma conspiração ao protestar o fato de JK não ter feito a maioria absoluta dos votos.

Em novembro, durante o enterro do presidente do clube militar no Rio de Janeiro, o Diretor da Escola Superior de Guerra discursou politicamente incitando que as Forças Armadas não apoiariam a posse do novo presidente. É neste momento que se destaca a figura do militar que tomaria as rédeas da situação e garantiria a normalidade democrática pelo exército: o Marechal Henrique Batista Duflles Teixeira Lott (apelidado de Caxias). Como reação ao discurso golpista do oficial, Lott, então Ministro da Guerra, resolveu puni-lo; embora não pudesse hierarquicamente já que o mesmo só poderia ser punido diretamente pelo presidente. Neste ínterim, o presidente em exercício, Café Filho, foi afastado por problema de saúde, e, Carlos Luz, presidente da Câmara dos Deputados, assumiu o cargo e resolveu não punir o militar; fato que nitidamente tentava abalar a posse democrática que se aproximava.

Como resposta, em 11 de novembro de 1955, o Marechal Lott se demite como Ministro da Guerra e, como um líder alinhado, colocou o exército às ruas garantindo que a instituição iria cumprir o seu papel de manter a democracia, no conhecido “Movimento 11 de novembro”. Carlos Luz foi deposto da presidência, e, nesta conturbação, Nereu Ramos, presidente do Senado, foi nomeado como presidente da República até a posse de Juscelino e Jango. Com a proteção do exército, liderado pelo Marechal que caracterizou a sua demissão como um aceno à legalidade da instituição que comandava, que, em 31 de janeiro de 1956, o presidente eleito, Juscelino, tomou posse.

A transição de 1955 e 1956 no Brasil é o principal exemplo de como o exército serve ao Estado brasileiro e não ao presidente, não a ideologias, não a vontades pessoais e nem a projetos de poder. A espada pode sim ser usada como garantia da democracia de fato. Os momentos em que o exército assumiu posição contrária foram justamente porque a sua cúpula aderiu aos calores políticos. A demissão de Lott do Ministério da Guerra foi o mecanismo necessário para unir seus subordinados a fim de destituir quem tentava o verdadeiro golpe à democracia: o presidente e aliados.

O Marechal Lott também foi importante pelo seu manifesto à legalidade da posse de João Goulart em 1961 após a renúncia do presidente Jânio Quadros - chegando a ser preso - e, não por acaso, foi desqualificado e isolado pela cúpula militar de 1964. Mas à História ele é símbolo de como o exército preza pela sua tradição: a legalidade. Por fim, a história da República no Brasil mostra-nos que os momentos de transição presidencial após um período autoritário e/ou conturbado requerem vigília, e o exército brasileiro atual, num contexto recente, já acenou que continua apto a proteger a nossa democracia. É como eternizou o Marechal Lott: “As Forças Armadas saberão portar-se à altura das tradições legalistas que marcaram sua história no destino da Pátria”.

MARÇO DE 1964

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 30 DE MARÇO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS  

            Em 13 de março de 1964, ao discursar na Praça da República no Rio de Janeiro, no “Comício da Central”, João Goulart (Jango), presidente da República, defendia a implantação das suas Reformas de Base a fim de promover justiça social e reforma agrária no Brasil. Temas que foram traduzidos pelos mais conservadores, num senso comum, em “transformar o Brasil em um país comunista e ateu”. A resposta não tardou, no dia 19, na capital paulista, 500 mil pessoas circularam numa marcha finalizada na Catedral da Sé, batizada de “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, solicitando a saída de Jango, um governo cristão e a intervenção do Exército. Através dos jornais, o evento foi convocado por associações religiosas, cívicas, anticomunistas, partidos opositores e entidades femininas como a “União Cívica Feminina” e a “Campanha da Mulher pela Democracia”. A presença das mais de cem entidades cívicas, do clero e de políticos sagrou o movimento como um aval civil para o alto escalão das Forças Armadas tomar o poder na República; fato que se consolidou no dia 31.

            Durante a marcha, as faixas estampavam os pedidos: “Comunismo não, Democracia sim”; “Lutaremos pela Constituição”; “Reformas com o Congresso”; como se somente um governo militar fosse capaz de livrar o país de um suposto comunismo e garantir a democracia. O fato é que a partir de abril, com a consolidação do golpe de 1964, a República no Brasil passou a ser gerida por militares e não havia democracia e nem Congresso. Foram 21 anos de engessamento democrático.

            Mesmo com a História à mostra e o exército brasileiro sendo legalista, ainda existem (poucas) pessoas que defendem a tal “intervenção militar” e governantes que deliram quanto a um exército pronto a defender a democracia; como se ela estivesse ameaçada. O delírio coletivo de 1964 usou do discurso democrático como falácia para ferir a Constituição e isso o Brasil não esqueceu. Março de 1964 não entrou à História pelas águas que fecharam o verão, mas sim pela tempestade que estava por vir.

Barretos e seus ecos

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 23 DE MARÇO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS       

Poeta, jornalista, dramaturgo e escritor, José Dias Leme viveu e trabalhou em Barretos entre 1915 e 1922; época em que a cidade ensaiava seu desenvolvimento graças a pecuária. Período interessante de ser estudado, pois, por mais que Barretos já fosse um importante município paulista no ramo pecuário e industrial, por conta do frigorífico, no aspecto urbano era ainda uma vila com poucos casarões ao centro, terrenos, ruas disformes e nem sempre asfaltadas. Íntimo das palavras, Dias Leme, em 1946, palestrou na União contando suas memórias. Dizia ele:

“O trem de bitola estreita chegava quase às 22 horas, cuspindo fagulhas e ao longe se anunciava com apitos estridentes. Não havia calçamento e sim poucas calçadas com passeios, e a poeira asfixiava os transeuntes e enxovalhava os moveis e as roupas. As ruas se afeiavam com casebres de tábua ou pau a pique, sem conforto nem alegria. As únicas distrações eram os concertos da ‘Orfelina’, aos domingos, no coreto da Praça Francisco Barreto, e as sessões de cinema mudo empresado pelo Martinelli. As vezes, umas procissões para quebrarem a monotonia da vida. O mais, eram tiroteios, assassinatos e a vida alegre dos lupanares dando um característico brejeiro à cidade, enquanto a política fervia com as quizilas dos ‘Araras’ e dos ‘Picapaus’”.

Esta narrativa, que mais parece um roteiro de novela de época, transporta a nossa imaginação à monotonia de uma cidade sertaneja, cujas distrações eram as procissões, o cinema e a banda. No entanto, a pasmaceira era quebrada pelos ecos da política acirrada, dos crimes rotineiros e dos cabarés; no geral, essas três características (política, crime e prostituição) estavam atreladas, já que seus protagonistas eram os mesmos: homens que ocupavam cargos políticos e de poder. Neste período, a cidade tinha fama de “boca do sertão” por ser a última cidade da linha férrea da Paulista, distante da capital, e por estampar notícias de crimes bárbaros na grande imprensa.

Essa era nossa Barretos, tão próspera, tão violenta e tão sertaneja.

Ainda sobre nós, mulheres

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 16 DE MARÇO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS      

            Assisti a um 8 de março interessante, com discursos contraditórios: por um lado, algo libertário e feminino, e, por outro, tradicionalista e machista.

            Nas redes sociais, pensadoras, intelectuais e artistas publicaram textos e vídeos sobre o “Dia da Mulher” referindo-se ao pouco que temos a “comemorar”, já que ainda são baixos os índices de igualdade profissional e de oportunidades, diferente do que acontece quanto aos dados de violência. Em contrapartida, o mesmo “Dia da Mulher” ostentou as conquistas que hoje nos parecem óbvias (direito ao voto, ao divórcio, ao trabalho, ao esporte, etc), mas que resultaram de longas lutas desbravadas por mulheres corajosas. Um discurso inteligente e intelectualmente construído.

            E, na via contrária dessa narrativa real e prática de muitas mulheres, instituições públicas e privadas perderam a chance de se sintonizarem a estes ideais e reproduziram pensamentos que aparentam ser sutis, mas que na verdade reforçam o machismo de uma forma romantizada. Em Barretos, inclusive, vi instituições públicas se referindo ao Dia da Mulher com mensagens que ligavam as mulheres exclusivamente à doçura, sacralidade, maternidade, luz, beleza; conceitos que engessam a mulher no estereótipo de figura ligada somente ao lar e aos filhos. O Dia da Mulher não é para isso, é uma oportunidade de enxergar a mulher como “ser social”, como um grupo que historicamente foi condicionado à submissão, mas que luta contra essas amarras, libertando-se pouco a pouco de rótulos e destituindo os limites que a sociedade lhe impõe. É sim um dia para falarmos da realidade assustadora que ainda precisamos driblar, cujo alcance será através da representatividade, ocupação dos espaços, gestão na política e no trabalho, pertencimento e empoderamento. (Se não fosse essa a realidade, este artigo não teria tantas palavras “ainda”).

            Não há mais espaço para discursos tradicionalistas, o futuro já começou às mulheres, e Barretos precisa engrenar nele.

Galeria Virtual “Mulheres na Política”

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 9 DE MARÇO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS     

            Qualquer par de olhos atento às informações contidas no site da Câmara Municipal de Barretos nota o quanto a política na cidade foi majoritariamente gerida por homens. Observando as legislaturas, como agulha no palheiro, notamos os nomes de apenas 8 mulheres como vereadoras. Maria Ignêz de Avila Jacintho, vereadora por dois mandatos, é quem inicia esta história no ano de 1973. Quarenta e quatro anos depois, nenhuma mulher ocupa a vereança na cidade; apesar dos poderes Executivo e Judiciário locais serem capitaneados por duas mulheres.

O passado e o presente mostram o quanto a mulher barretense demorou para ingressar à política, e, na mesma medida, o quanto é difícil se manter nela. Pensando nisso, eu e as advogadas Cassiane Melo Fernandes e Fernanda Morato da Silva Pereira, enviamos, no fim do ano passado, um ofício à Câmara Municipal sugerindo a criação de uma Galeria Virtual com a exibição das fotos e legislaturas dessas oito vereadoras. O pedido foi atendido agora, pela iniciativa do vereador Chafei Amsei e da mesa diretora, como parte comemorativa do Dia das Mulheres.

A justificativa, por mais óbvia que seja, merece ser externada; contando inclusive com as argumentações da Constituição Cidadã de 1988. Os conceitos de pluralismo, pertencimento, igualdade, visibilidade, representatividade e empoderamento serviram para embasar o nosso pedido na intenção de refletir que são estes os caminhos para as mulheres ocuparem os espaços públicos, exporem suas opiniões e necessidades e participarem de forma direta no desenvolvimento social e econômico da cidade. A voz feminina precisa do microfone da Tribuna para ecoar e se multiplicar.

A Galeria Virtual “Mulheres na Política” se por um lado mostra o quanto o passado foi restrito às mulheres, por outro, incita que a própria História alerte as mulheres de hoje que o nosso futuro clama pela nossa participação. Não se trata só de registro, é também incentivo. Que a Galeria seja inspiração e impulso a novas histórias.

O chá da meia-noite

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 2 DE MARÇO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS              

            Certamente você já ouviu essa expressão, mas, talvez não saiba que ela se oficializou durante a Gripe Espanhola de 1918, terrível pandemia. Nos tempos atuais, não é estranho imaginar que a Espanhola dilacerou a população a ponto de superlotar os hospitais e causar pânico no povo; afinal, morriam dos mais velhos às crianças. Inclusive, no Rio de Janeiro, a gripe ficou conhecida inicialmente como “limpa velhos” pela dedução de que ela mataria somente a população idosa. (Te lembra algo?).

            O “chá da meia-noite” foi uma expressão popular cunhada durante a terrível Gripe, por conta do caos que pairava na Santa Casa de Misericórdia do RJ – batizada, então, como “Casa do Diabo”. A péssima higiene, a falta de leito e a assustadora quantidade de mortos eram estampadas nos jornais e alimentavam o fecundo imaginário da população. Solo fértil para a lenda urbana do temível chá se alastrar.

Contava o boato que para desocupar os leitos, já que novos pacientes não paravam de chegar, por volta da meia-noite era servido um “chá” aos doentes desenganados; e no outro dia, todos estavam mortos. O chá seria, portanto, um veneno letal, e a lenda uma maneira popular de falar sobre a eutanásia. É provável que isso não tenha ocorrido de fato, porém, a lenda era tão vigente, que, no carnaval de 1919, cuja celebração é considerada a mais “louca” da história – já que as pessoas celebravam o fim da pandemia de uma maneira desordeira e até violenta, o “chá da meia-noite” foi transformado num carro alegórico com uma grande xícara e virou tema de marchinha, desfiles, bailes e bloco carnavalesco.

Ainda mais interessante é que em nossa região, durante a epidemia de Febre Amarela em São Simão, entre 1896 e 1905 (antes da Espanhola), existiram relatos acerca de sobreviventes que teriam se livrado de um “chá” servido à noite aos pacientes internados no Lazareto. Outra lenda urbana do imaginário humano, “fake news das antigas” ou uma suposta verdade? É melhor não pensar sobre isso nestes tempos.


A Febre Amarela em São Simão

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 23 DE FEVEREIRO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS               

            São Simão, de 196 anos, cidade antiga próxima a Ribeirão Preto, em sua História viveu ondas epidêmicas de Febre Amarela que assolaram a população entre 1896 a 1905. O município fazia parte do roteiro do oeste paulista cafeeiro, era uma vila próspera com imensas fazendas de café, trabalhadores italianos, mineiros e fluminenses. Possuía estação ferroviária para transporte de sua atividade econômica e de passageiros, sendo essa a principal via de contaminação e propagação da doença.

            Em 1896 teve o primeiro e mais assustador surto; dos 4000 habitantes, 800 morreram. 1/5 da população morta! A grande quantidade de doentes e de mortos aliada ao medo do contágio repercutiram na criação de um cemitério distante, no distrito de Bento Quirino. Ali perto, abriu-se um hospital para abrigar os doentes, o Lazareto. A população não conhecia a doença e a sua transmissão, apesar dos surtos em Campinas e Sorocaba. Naquele hospital, atuavam um destemido ex-escravizado, Benedito Geraldo, que levava os mortos de lá para o cemitério, e o médico José Vieira Neto Leme. Foi este médico quem denunciou ao governo do estado a calamidade na cidade, uma vez que os vereadores e o Intendente tentavam esconder e negar a realidade temendo uma desvalorização das terras e a perda do poder político. (Conhecem essa história?). Foi então que, o governo estadual enviou à funesta São Simão o sanitarista Emílio Ribas, que, depois de experimentos na população, verificou que a transmissão não se dava pelos fluídos e sim pelo mosquito Aedes Aegypti. Esses estudos chamaram a atenção do sanitarista Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, cidade também arrasada pela Febre, e contribuíram para o sucesso da vacina em 1907.

            Não é surpreendente dizer que, pelo negacionismo político, São Simão deflagrou-se no desenvolvimento, pois parte da população foi morta e outra fugiu para cidades como Ribeirão Preto (que tanto prosperou com o mesmo café). Foi a Febre ou a ignorância política que exauriu a cidade? É de se pensar, no presente, inclusive.

A Ponte do Mojiguaçu

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 24 DE FEVEREIRO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS   

            Sempre que viajo pela Rodovia Armando de Sales Oliveira, entre Pitangueiras e Sertãozinho, pelo lado direito, vejo o Rio Mojiguaçu em sua imensidão e sobre ele uma ponte de ferro em arcos. A ferrugem da ponte revela que a sua vida é longeva, despertando curiosidade nos olhos desta historiadora. Se trata de uma ponte com trilhos de trem, inativa, que resiste calada sobre o curso do “grande rio das cobras”.

            Calcule a surpresa, portanto, quando, dias atrás, me deparei com uma foto da “dita cuja” da ponte na Revista “Vida Moderna”, publicada na capital paulista, em 24 de fevereiro de 1921; isto é, há 100 anos! É claro que os 100 anos são pura coincidência (ou não?), mas a foto estampada na revista de alta circulação dizia sobre a ponte: “A comunicação natural entre a zona de Ribeirão Preto e Sertãozinho, e a zona de Pitangueiras, Bebedouro, Barretos, Jaboticabal, Collina, etc. e a que passa pela cidade de Pitangueiras, atravessando a ponte que acima reproduzimos, sobre o rio Mogy-Guassú, na estação da Passagem, da Estrada de Ferro Paulista”.

            A publicação tornou nítida a importância da ponte naquele começo do século XX como um meio de tecnologia, comunicação e transporte entre as zonas econômicas paulistas, ao menos da região nordeste de São Paulo. Ribeirão Preto já era uma cidade próspera na cultura cafeeira e Pitangueiras não ficava distante, sendo também uma região produtora do “ouro verde”. Aliás, Pitangueiras surgiu no alvorecer do século XIX a partir dos pousos que se estabeleceram na margem esquerda do Mogi, onde eram guarnecidos os tropeiros que trafegavam com suas mulas em cima de balsas atravessando o rio e carregando mercadorias entre Goiás/Minas e São Paulo/sul. Evidente que nessa época a ponte não existia, ela representou a modernidade do trem, substituto gradual das balsas e das tropas; o que também denota o seu valor histórico.

            Interessante como uma imensa ponte enferrujada pode contar tanto sobre o passado de toda a região. Se tem uma ponte e um rio, tem História.       

À União, a História

 ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 10 DE FEVEREIRO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS    

            Aos barretenses, só restaram as lembranças. À União, a História. A demolição da sede da União dos Empregados no Comércio causou consternação em alguns barretenses, certamente movidos por saudosismo. Natural e esperado.

A União completaria, neste ano, 107 anos de existência e é trivial dizer que por isso ela faz parte da história de Barretos. Um clube se sustenta por seu nascimento, estatutos, diretorias, sedes e particularidades. Fundada em 16 de agosto de 1914, a U.E.C. tornou-se utilidade pública municipal em 1924 e estadual em 1954. Sua fundação ocorreu no Hotel do Comércio por jovens interessados no congraçamento da classe comerciária daquela Barretos que ainda viria a prosperar. Contam os registros que, a denominação “União dos Empregados no Comércio” foi ratificada quando um emissário de Barretos foi até Campinas, onde estava hospedado o escritor Ruy Barbosa, para solucionar com ele a dúvida quanto à questão gramatical da preposição “do” ou “no”; ao passo que este respondeu “no Comércio”. Assim ficou.

            Em 1919, com o presidente José Dias Leme (poeta), a União começou a construir seu prédio próprio, à rua 20 entre as avenidas 21 e 23. No mesmo ano, foi criado o seu Corpo Cênico, revelando uma das principais características do clube: o teatro. O “teatrinho da rua 20” abrigou espetáculos, carnavais, conferências, horas literárias, concertos, bailes e saraus que desbravaram a cultura na cidade. Ali, Coelho Netto conferenciou “A Floresta” em 1920, Salomão Jorge em 1934, além de outros visitantes de todo o Brasil. Na mesma medida, o esporte e as competições também foram notáveis na trajetória do clube. Em 1968, foi inaugurada na recente avenida 43 a sede de campo, a qual, nos anos seguintes ganhava novas dependências. Não é de se estranhar como as sedes da União, bem como seus principais momentos, são consoantes a episódios marcantes de Barretos. A década de 1910 viu muitos clubes nascerem, poucos permanecerem. A velha U.E.C. agora vive somente em nossa História.

SÁBIO DR. LEX!

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 2 DE FEVEREIRO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS      

 “Tenho notado que os habitantes desta cidade e de toda a comarca, são em geral, refractarios à vaccinação preventiva contra a varíola (bexigas) e o são, estou certo, por não terem tido ocasião de presenciar epidemias ou casos isolados dessa terrível doença.” (O Sertanejo, Barretos/SP, 9/6/1901, p. 1 – grafia da época). 

            As palavras acima são do médico Mathias Lex, que, aos 75 anos, contratado pela Câmara Municipal de Barretos, havia se fixado na cidade para liderar uma campanha de vacinação da varíola. Em 1901, no governo paulista, a Saúde era administrada pelo Serviço Sanitário do Estado, e, este, registrando casos de varíola, orientou que os municípios iniciassem campanhas de vacinação para evitar surtos e epidemia.

O Dr. Lex, no alto de sua experiência, ia à imprensa relatar o quanto a população barretense pouco aderiu à vacinação, que ocorria nas dependências da Câmara Municipal. Numa população em média de 5000 pessoas, somente 112 se vacinaram em um mês, sendo somente 5 adultos. Para melhor explicar sobre a vacina, o jornal O Sertanejo propagava que a linfa vacínica era pura, fresca e indolor. O dr. Lex, ainda, deixava claro que a baixa adesão era porque a população ainda não havia presenciado uma epidemia. Lembrando que nos anos de 1900, no Brasil, foram criados importantes institutos como o Butantan e a FioCruz e ocorreram surtos epidêmicos graves e até uma revolta na população carioca contra a compulsoriedade da vacinação (em 1904).

Exatos 120 anos se passaram da frase do dr. Lex, e cá estamos vivendo uma pandemia (pior ainda!), onde, no Brasil, dois tipos de vacinas começaram a ser disponibilizados para minorar os efeitos de um vírus mortal. Porém, mais de um século depois, ainda existem pessoas que se recusam em compreender os benefícios da vacina; mesmo vivendo o tempo real da pandemia e a vacina em situação emergencial. Sábio dr. Lex, ainda bem que cá não está para ver esse tipo de comportamento do “futuro”.

120 anos de Butantan

 ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 26 DE JANEIRO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS                                   

 

            Butantan é, provavelmente, a palavra mais dita nos últimos dias. Todos falamos sobre o Instituto de denominação indígena que trouxe ao Brasil a primeira vacina contra o vírus que ora nos assola. Butantan é quase significado de “esperança”.

            Um dos fatores que o governo paulista, então negociador da CoronaVac, adotou para validar a vacina foi a seriedade do Instituto Butantan em relação à história da saúde pública brasileira. Afinal, prestes a completar 120 anos de fundação, carrega em sua bagagem estudos e conquistas de vacinas importantes no Brasil: Meningite (1920), Hanseníase (1922), Antivariólica (1925), BCG (1926), Difteria (1927), Influenza (1948), Febre Amarela (1953), Poliomielite (1962), DTP (1963), Cólera (1971), Sarampo (1972), Encefalite (1977), Hepatite B (1999); somente para citar algumas, além dos soros contra toxinas de animais peçonhentos e microrganismos.

             É paulista e republicana sua origem, quando a partir da criação da “Inspectoria de Hygienne do Estado de São Paulo” (1892) e da organização do Serviço de Saúde Pública de São Paulo (1898), a saúde pública no estado passou a ser institucional. Naquele período, doenças como a peste bubônica, febre amarela, tuberculose e varíola causavam epidemias na população. Tanto que, é da mesma época a origem da Fundação Oswaldo Cruz, em 1900, cujo nome era “Instituto Soroterápico Federal”, atuante no Rio de Janeiro. Devido a um surto de peste bubônica no porto de Santos, em 1899, foi criado um laboratório de produção de soro antipestoso junto ao Instituto Bacteriológico (atual Instituto Adolfo Lutz), instalado na “Fazenda Butantan”, de propriedade do governo paulista. Em fevereiro de 1901, tal laboratório tornou-se autônomo e passou a denominar-se “Instituto Serumtherápico”; anos mais tarde, Instituto Butantan.

            Ainda é tempo de reconhecer que o fator de credibilidade do Butantan se encontra na trajetória acumulativa de vacinas e soros que salvam vidas há 120 anos. Mais de um século prestando serviço de saúde pública aos brasileiros. Viva o Butantan!

POR DETRÁS DOS LETREIROS

 ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 19 DE JANEIRO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS    

            Caminhar pelo centro da cidade de Barretos pode ser uma viagem no tempo; se olhos sensíveis você tiver, evidente. A paisagem que hoje verticaliza-se no calçadão e ao seu entorno é de prédios comerciais dotados de letreiros, cada qual numa cor e propaganda diferente. A intenção dessas placas é denominar a loja e chamar a atenção dos consumidores, mas, para quem enxerga “além”, a real função delas é cobrir a beleza dos estilos arquitetônicos que um dia enfeitavam e traduziam a modernidade das épocas. A atual vista se assemelha a uma poluição nos olhos, onde cores fortes e letras disformes parecem brigar pela atenção do nosso pensamento.

            O centro da cidade nasceu ao redor da Matriz, e, desde o começo do século XX, residências e comércios ali se instalaram timidamente. Em certos momentos, o centro parecia um mosaico onde lado a lado poderia existir o que havia de mais moderno com o que existia de mais antigo. E mais, as fachadas eram límpidas. A competição pela atenção era no concreto, no gesso, na telha e na cor que se recaia sob as estruturas. Os olhos das pessoas que transitavam no centro não brigavam com letreiros, e sim passeavam livremente pelos traçados arquitetônicos ora retilíneos, ora curvos.

            Com este raciocínio, a impressão que se tem é que o passado era um tempo maravilhoso, onde tudo era perfeito. E sabemos que não é assim. Esse tipo de visão genérica somente faz romantizar questões que, na realidade, são complexas. Mas, para além disso, a reflexão deve ser voltada sobre o quanto precisamos preservar a nossa cultura material, seja através da arquitetura, dos objetos ou de qualquer outra fonte que nos remeta ao passado que a cidade vivenciou. Independente se gostamos, se temos vergonha, se achamos bonito ou feio, o fato é que o presente é uma sucessão do passado, e estamos aqui para questioná-lo e conhece-lo. Conhecer, não reviver. Todavia, como conhecer se nem ao menos podemos enxergar os vestígios dos tempos idos, já que o presente insiste em nos confundir com tanta poluição visual? Fica a reflexão.

O centenário da nossa Santa Casa

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 12 DE JANEIRO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS    

            É edificante pensar que temos um hospital na cidade que carrega 100 anos de fundação, a Santa Casa de Misericórdia de Barretos. Era 9 de janeiro de 1921 quando a primeira mesa diretora foi formada e trabalhou intensamente à conclusão de ao menos parte das obras do hospital, que já duravam 4 anos. Três meses depois, as enfermarias foram inauguradas de forma solene pelas autoridades e população. De lá para cá, a história da Santa Casa foi construída, literalmente, de tijolo a tijolo.

            A religiosidade foi desde o início presença constante na Misericórdia de Barretos. A começar pelos personagens mais antigos, a primeira manifestação de se construir a Santa Casa, com campanhas em 1917, partiu do padre português José Martins, que era pároco na Matriz. Ele conseguiu autorização do Bispo de São Carlos, Dom José Marcondes Homem de Mello, para a doação do terreno da Igreja à construção do novo hospital. Na época, a cidade tinha somente a Casa de Caridade, dentro da Sociedade Espírita 25 de Dezembro, como um pequeno hospital em funcionamento. Era necessário um hospital novo; amplo. Foi assim que a autorização foi concedida, com a salvaguarda de que o hospital fosse regido por freiras religiosas. Como de fato foi. As Irmãs Franciscanas desde 1930 trabalharam no hospital prestando serviços na enfermaria e na administração. A religiosidade imperava também na Capela de Santa Isabel, inaugurada em 1932, e demolida na década de 1970 (ficava onde hoje é o Raio-x).

            Todavia, a ciência e a medicina também tinham seus espaços. O próprio prédio inaugurado em 1921 possuía uma ornamentada arquitetura, cujo espaço hospitalar se destacava consoante aos anseios da instrução sanitária. Os médicos, formados nas grandes universidades do país, eram a voz da ciência e tecnologia. Já os provedores e administradores foram os responsáveis pelos pavilhões que ampliaram o hospital, como o “Titinha Franco” em 1936, a Maternidade em 1955, o Pavilhão Husseim Gemha em 1967 e o novo pavilhão de 1988. Todos demoraram anos e anos para serem finalizados, demonstrando o quanto a história da Santa Casa foi edificada sob luta, trabalho e dedicação. Viva o seu primeiro centenário!