terça-feira, 5 de setembro de 2023

Elisa Branco, do bairro Fortaleza a Moscou

 Para citação:

MEDEIROS, Karla O. Armani. Elisa Branco, do bairro Fortaleza a Moscou. In: MERENDA, José A. Escritores de Barretos em Verso & Prosa (volume 3) - Academia Barretense de Cultura. São Paulo: Perfil Editorial, 2023, p. 107-118.















terça-feira, 1 de junho de 2021

Aos monumentos (Parte I)

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 1º DE JUNHO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS    

Busto da República de 1922 centralizado na Praça Francisco Barreto
(Fotografia: Acervo Museu "
Ruy Menezes").


            Permita-me o leitor uma (nem tão) despretensiosa reflexão. Sobre os monumentos da cidade, você já se deu conta do quanto eles nos contam sobre o passado e o presente? E mais, do quão a manutenção deles é importante para a fruição da Cultura? Sim, Cultura em maiúsculo, no sentido de ser uma importante área de gestão que dissemina identidades, preserva memórias e promove criticidade ao povo.

            Em geral, os monumentos se localizam nas praças e possuem conexão com elas. São instalados em locais públicos de grande circulação e ampla visibilidade, pois são erigidos justamente para serem contemplados. Todos os monumentos possuem intenções, a fim de eternizar uma ideia ou um projeto da época em que foram erguidos. Com o passar do tempo, o ideal original do monumento se perde e até pode ser negado pelo presente (exemplo de estátuas de monarcas, traficantes de escravos, bandeirantes e líderes assassinos). Porém, o tempo transforma o monumento em fonte histórica e dele não se espera a disseminação daquele ideal e sim o conhecimento sobre a sociedade do passado. Morre o ideal, nasce a História. E preserva-se por isso.

            As pessoas e as épocas mudam, como esperar delas que se identifiquem com o mesmo ideal de séculos passados? Ao preservar um monumento antigo, a Cultura mostra à população quais eram os pensamentos, os anseios, os projetos e a mentalidade do poder político de uma época, isto porque quem geralmente edifica monumentos são os governos. Os mesmos governos que mandam descartá-los.  

            Em Barretos, por exemplo, a Praça Francisco Barreto abrigou alguns monumentos que, depois, foram retirados a mando de prefeitos com a justificativa de reformas em nome da “modernidade”. Um erro histórico, pois o presente bem mostra que alguns acabam voltando ao seu lugar de origem. Os monumentos só fazem sentido quando estão in loco, eles verticalizam por si só aquilo que é nosso, independente se gostamos ou não, a nossa história. [continua].

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


segunda-feira, 31 de maio de 2021

A Rua da Lindeza

 ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 25 DE MAIO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS   

            No início, ela tinha o nome de Rua do Comércio, ainda no final do século XIX. Não demorou muito e seu nome mudou para Rua Prudente de Moraes. Foi em 1915, no entanto, que as ruas em Barretos passaram a ser denominadas com números pares e as avenidas ímpares, e, deste modo, ela passou a ser chamada de “Rua 14”. Mesmo assim, seu nome era para ter sido outro – e por pouco não o foi: a Rua da Lindeza.

            É Osório Rocha quem conta sobre a Rua da Lindeza, em páginas esporádicas de seu Barretos de Outrora. Exemplifica que, repetidas vezes, ela chegou a ser assim registrada em escrituras de cartório. Popularmente, a rua 14 era conhecida desta forma pois era muito linda e tinha se tornado a via pública mais importante da cidade, desbancando, inclusive a Rua 8 (que tinha se formado primeiro). Os motivos para tal não eram somente seus casarões e palacetes, mas a imponência do Colégio São João, os cartórios ali estabelecidos, bem como hotéis, clínicas médicas, farmácias e comércio de fino trato. Ademais, era ali que se fixavam os instrumentos de cultura e recreação, como a Sociedade Instrução e Recreio, a redação de “O Sertanejo”, a primeira sede do Grêmio Literário e Recreativo, o salão musical da Euterpe e outros.

            Foi a rua em que se estabeleceu a primeira sede da Intendência Municipal (prefeitura), além de ter sido o destino, na primeira oportunidade da Câmara Municipal, de 20 lampiões como melhoramento ao local. É claro que com o passar das décadas, outros comércios e residências se estabeleceram com construções arquitetônicas variadas. O sobrado da família Nogueira, onde funcionou o Banco de Barretos, à esquina da 23, e a casa do jornalista Emílio José Pinto, junto a outros casarões de encher nossos olhos de beleza, são as edificações que ainda resistem por ali.

            Se no começo do século XX, com parcos recursos urbanos, ela já era uma lindeza, imagine com o contar das décadas? (Mesmo quando perdeu seus paralelepípedos). Que a Rua da Lindeza permaneça conservada!

Vozes da escravidão

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 18 DE MAIO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS   

            Apesar de ser um processo histórico nacional, a escravidão no Brasil foi tratada de forma distante e genérica, onde os escravizados eram sumariamente classificados como “africanos” (ignorando suas tribos), e seus costumes, valores e crenças, assim como a sua história violenta, foram traduzidos a relatos superficiais. As áreas rurais e urbanas brasileiras se constituem nos verdadeiros locais de memória da escravidão, remendando histórias que, mesmo com o contar dos anos, tornam este processo mais íntimo, próximo e real. Assim é com Barretos, arraial que se formou oficialmente em 1854, vivendo pelo menos 34 anos de escravidão institucional.

            Osório Rocha, em seu “Barretos de Outrora”, é quem melhor registrou depoimentos sobre os escravizados na cidade. Mesmo com poucos relatos, por ali é possível identificar que grande parte deles vinha de Minas Gerais, apesar de nascidos na África. Sobre isso, ele notou as cicatrizes que alguns possuíam na face, as quais receberam desde criança em suas tribos de origem. Osório identificou dois tipos delas: alguns com “verrugas no queixo, na ponta do nariz e sobre este à testa formavam uma cruz”, e outros da etnia “Monjolo” que “em vez dessas saliências, apresentavam cicatrizes nas duas faces, da boca às orelhas, paralelas retas, feitas à faca”.

            Dando vozes a Mãe Mina, Policarpo Balbino, Venância, Júlia, Alexandre, Mãe Tória, Felipe, Antônio e Rita Bagagem, Osório registrou histórias que transparecem a violência da imposição da fé dogmática, do castigo, da vil separação de mães e filhos e de escravizadas que passavam a vida procurando seus bebês. Mostrou mais, que após a Abolição muitos ex-escravizados foram morar no bairro periférico de Barretos, o “Outro Mundo”, levando a vida na informalidade e na pobreza.

            É triste, mas é a nossa realidade. Nossa. Somos a sucessão daquele passado, que é longe de ser um lugar bonito. (Rita Bagagem, quando menina, entrou por curiosidade num navio negreiro e não conseguiu mais sair. Dá para acreditar?).

As cigarras precisam cantar

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 11 DE MAIO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS  

            É outono. Segundo a fábula do escritor La Fontaine, recontada no século XVII depois da versão original do grego Esopo, a cigarra canta no verão, enquanto as disciplinadas formigas trabalham para garantir uma boa passagem no inverno. Essa fábula, imersa na lógica capitalista, eternizou a figura da cigarra como preguiçosa, já que, ao invés de trabalhar como as incansáveis formigas, ela (só) cantava em cima das árvores e quando chegou o inverno ela correu a pedir abrigo às trabalhadoras. Dada a distância do tempo e da mentalidade, essa versão começou a ruir, visto que o canto das cigarras passou a ser considerado uma forma de trabalho, de entretenimento e de arte. Era a cigarra que trazia a alegria ao verão, era de sua natureza cantar e encantar.

            O fato é que cigarra é cigarra, e formiga é formiga. A natureza delas é diferente, e não há de se esperar de ambas uma atitude em comum. O mundo precisa do (en)canto das cigarras e La Fontaine sabia disso. Não só ele. Coelho Netto, escritor maranhense, ao visitar Barretos em 1920, deixou registrado no livro de visitantes do Grêmio que a casa gremista era uma “árvore de sombra amena” onde os homens, depois de um dia de trabalho, podiam recolher-se e lá ouvir o canto das cigarras. Poetizou, ainda mais, dizendo que as cigarras “eram os poetas que cantavam nas folhas dos livros”.

            Exatos cem anos depois, em 2020, nas comemorações dos 110 anos do Grêmio, eu, historiadora, voltei à mensagem de Coelho Netto, despindo dela a fábula do francês La Fontaine, para me inspirar e dali escrever meu livro “De onde cantam as cigarras”. O livro que analisa a origem do Grêmio em 1910 e a maneira como ele se tornou uma instituição de tradição em 1945, se cruza com a história cultural da cidade.

            No ano passado, a pandemia não permitiu o lançamento presencial, e, em 2021, a mesma situação exige medidas restritivas para a noite de autógrafos que acontecerá no dia 12. No entanto, as cigarras precisam cantar, mesmo que seja outono e que seu canto esteja um tanto escondido pela máscara. Afinal, o verão se aproxima.

99 de Jorge!

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 4 DE MAIO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS   

            Que me desculpe Silvestre deu Lima e a sua perspicaz intelectualidade, que me perdoe a sagacidade do Cel. Almeida Pinto e que não me ouça o Cel. Jesuíno de Mello, nem o juiz Joaquim Fernando de Barros – todos viventes em Barretos e donos de uma poderosa escrita - mas, quando me pedem para eleger um ilustre intelectual na história da cidade, meus dedos correm a digitar: Jorge Andrade, barretense. Não por acaso, na virada do mês de maio, lembrei-me dele, de sua figura junto à máquina de escrever, já que no dia 21 ele completaria 99 anos. A mim, maio profetiza Jorge Andrade.

            Não consegui esperar o dia 21, precisei correr às teclas para lembrar a todos os 99 de Jorge. Ano que vem, em seu centenário, ele certamente receberá as mais justas e belas homenagens, mas quis me adiantar. Alguém que sai da aristocracia interiorana, entra à dramaturgia depois ter sido aconselhado pela diva Cacilda Becker e que teve sua primeira peça como marco inicial na carreira da (também diva) atriz Fernanda Montenegro, merece ser lembrado e reverenciado.

            A sensibilidade de Jorge Andrade é traduzida em seus textos através de uma crítica social certeira, que de maneira inteligente denunciava as questões sociais e políticas de um Brasil interiorano, esquecido e renegado. A tríade “A Moratória”, “Veredas da Salvação” e “Pedreiras das Almas” é um retrato da História do Brasil, em complexas fases, a ponto da composição dos personagens, a movimentação das cenas e o texto sincero ser confundido com a própria realidade do que de fato aconteceu. Para um historiador, é nítido o quanto Jorge conhecia profunda e criticamente o passado brasileiro a ponto de exprimir uma dramaturgia que grita, que não desmerece a inteligência de quem assiste, ao contrário, eleva à reflexão a assuntos superiores.

            O texto de Jorge nos convida ao conhecimento do que (e o porquê) os brasileiros nunca conseguiram ser. Sua máquina datilográfica parece ainda ressoar, é atemporal. Enquanto Barretos existir, Jorge será lembrado. Viva os seus 99!

A tal mentalidade

ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 27 DE ABRIL DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS  

            Os jornais e livros antigos sobre Barretos revelam muito mais do que aparentam; deixam escapar desabafos e indignações. Neles, uma característica sempre me chamou a atenção: o uso das expressões “mentalidade bovina”, “bovinismo” e “mentalidade de cimento armado”. A última foi grafada, em tom de desabafo, pelo escritor Osório Rocha em seu “Barretos de Outrora”, e a primeira encontra-se em algumas edições da imprensa, especialmente o “Correio de Barretos”.

A tal “mentalidade bovina” é uma inteligente metáfora usada para descrever o conservadorismo de certas classes barretenses – em principal, parte de uma poderosa elite – que, avessas às mudanças, engessavam processos que poderiam trazer novidades, modernidade e abalar a ordem social. A intenção dos adeptos ao bovinismo, portanto, era não apoiar iniciativas “ousadas” em nome de moralismo (ou de nada).

            Como exemplo, dois episódios interessantes denunciam a tal mentalidade bovina, ambos envolvendo a Educação em Barretos. O primeiro, em 1931, a partir da criação do Ginásio Municipal de Barretos, cuja instalação foi encabeçada por Osório Rocha com a “Sociedade Escolas de Barretos”. Na época, existiram figurões que foram contrários à criação da primeira escola secundária de Barretos; para eles, quem quisesse estudar depois do 4º ano, a opção seria Bebedouro. Em situação parecida, pulando para 1964, a origem da Fundação Educacional de Barretos, a primeira instituição de ensino superior na cidade, também passou intemperes do bovinismo (somado a rivalidades políticas), que achava desnecessária e impossível a vinda de professores de “tão longe”.

            Tratando-se de Barretos, a tal mentalidade foi denominada “bovina” em alusão à pecuária e ao gado tangido, imortalizando uma característica da nossa própria origem. O problema foi a perpetuação dessa mentalidade ao longo das décadas e, pior, na contramão das ações intelectuais modernas e de projetos tão sólidos como a Educação. E não é de se espantar que ela ainda apareça por aqui. Habemus.