Para citação:
MEDEIROS, Karla O. Armani. Elisa Branco, do bairro Fortaleza a Moscou. In: MERENDA, José A. Escritores de Barretos em Verso & Prosa (volume 3) - Academia Barretense de Cultura. São Paulo: Perfil Editorial, 2023, p. 107-118.
Escrever sobre a história da própria cidade não é somente (re)construir o seu passado, mas também promover reflexão, cultura e identidade; é tornar a profissão do historiador um nobre ato de cidadania. Aqui, Barretos é fonte e caminho para a construção da História.
Para citação:
MEDEIROS, Karla O. Armani. Elisa Branco, do bairro Fortaleza a Moscou. In: MERENDA, José A. Escritores de Barretos em Verso & Prosa (volume 3) - Academia Barretense de Cultura. São Paulo: Perfil Editorial, 2023, p. 107-118.
ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 1º DE JUNHO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS
Busto da República de 1922 centralizado na Praça Francisco Barreto (Fotografia: Acervo Museu " Ruy Menezes"). |
Permita-me o leitor uma (nem tão)
despretensiosa reflexão. Sobre os monumentos da cidade, você já se deu conta do
quanto eles nos contam sobre o passado e o presente? E mais, do quão a
manutenção deles é importante para a fruição da Cultura? Sim, Cultura em
maiúsculo, no sentido de ser uma importante área de gestão que dissemina identidades,
preserva memórias e promove criticidade ao povo.
Em geral, os monumentos se localizam
nas praças e possuem conexão com elas. São instalados em locais públicos de
grande circulação e ampla visibilidade, pois são erigidos justamente para serem
contemplados. Todos os monumentos possuem intenções, a fim de eternizar uma
ideia ou um projeto da época em que foram erguidos. Com o passar do tempo, o
ideal original do monumento se perde e até pode ser negado pelo presente
(exemplo de estátuas de monarcas, traficantes de escravos, bandeirantes e
líderes assassinos). Porém, o tempo transforma o monumento em fonte histórica e
dele não se espera a disseminação daquele ideal e sim o conhecimento sobre a
sociedade do passado. Morre o ideal, nasce a História. E preserva-se por isso.
As pessoas e as épocas mudam, como
esperar delas que se identifiquem com o mesmo ideal de séculos passados? Ao
preservar um monumento antigo, a Cultura mostra à população quais eram os
pensamentos, os anseios, os projetos e a mentalidade do poder político de uma
época, isto porque quem geralmente edifica monumentos são os governos. Os
mesmos governos que mandam descartá-los.
Em Barretos, por exemplo, a Praça
Francisco Barreto abrigou alguns monumentos que, depois, foram retirados a
mando de prefeitos com a justificativa de reformas em nome da “modernidade”. Um
erro histórico, pois o presente bem mostra que alguns acabam voltando ao seu
lugar de origem. Os monumentos só fazem sentido quando estão in loco,
eles verticalizam por si só aquilo que é nosso, independente se gostamos ou não,
a nossa história. [continua].
ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 25 DE MAIO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS
No início, ela tinha o nome de Rua do
Comércio, ainda no final do século XIX. Não demorou muito e seu nome mudou para
Rua Prudente de Moraes. Foi em 1915, no entanto, que as ruas em Barretos
passaram a ser denominadas com números pares e as avenidas ímpares, e, deste
modo, ela passou a ser chamada de “Rua 14”. Mesmo assim, seu nome era para ter
sido outro – e por pouco não o foi: a Rua da Lindeza.
É Osório Rocha quem conta sobre a
Rua da Lindeza, em páginas esporádicas de seu Barretos de Outrora. Exemplifica que,
repetidas vezes, ela chegou a ser assim registrada em escrituras de cartório.
Popularmente, a rua 14 era conhecida desta forma pois era muito linda e tinha
se tornado a via pública mais importante da cidade, desbancando, inclusive a
Rua 8 (que tinha se formado primeiro). Os motivos para tal não eram somente seus
casarões e palacetes, mas a imponência do Colégio São João, os cartórios ali
estabelecidos, bem como hotéis, clínicas médicas, farmácias e comércio de fino
trato. Ademais, era ali que se fixavam os instrumentos de cultura e recreação,
como a Sociedade Instrução e Recreio, a redação de “O Sertanejo”, a primeira
sede do Grêmio Literário e Recreativo, o salão musical da Euterpe e outros.
Foi a rua em que se estabeleceu a
primeira sede da Intendência Municipal (prefeitura), além de ter sido o
destino, na primeira oportunidade da Câmara Municipal, de 20 lampiões como
melhoramento ao local. É claro que com o passar das décadas, outros comércios e
residências se estabeleceram com construções arquitetônicas variadas. O sobrado
da família Nogueira, onde funcionou o Banco de Barretos, à esquina da 23, e a
casa do jornalista Emílio José Pinto, junto a outros casarões de encher nossos
olhos de beleza, são as edificações que ainda resistem por ali.
Se no começo do século XX, com
parcos recursos urbanos, ela já era uma lindeza, imagine com o contar das
décadas? (Mesmo quando perdeu seus paralelepípedos). Que a Rua da Lindeza
permaneça conservada!
ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 18 DE MAIO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS
Apesar de ser um processo histórico
nacional, a escravidão no Brasil foi tratada de forma distante e genérica, onde
os escravizados eram sumariamente classificados como “africanos” (ignorando
suas tribos), e seus costumes, valores e crenças, assim como a sua história
violenta, foram traduzidos a relatos superficiais. As áreas rurais e urbanas
brasileiras se constituem nos verdadeiros locais de memória da escravidão,
remendando histórias que, mesmo com o contar dos anos, tornam este processo
mais íntimo, próximo e real. Assim é com Barretos, arraial que se formou oficialmente
em 1854, vivendo pelo menos 34 anos de escravidão institucional.
Osório Rocha, em seu “Barretos de
Outrora”, é quem melhor registrou depoimentos sobre os escravizados na cidade.
Mesmo com poucos relatos, por ali é possível identificar que grande parte deles
vinha de Minas Gerais, apesar de nascidos na África. Sobre isso, ele notou as
cicatrizes que alguns possuíam na face, as quais receberam desde criança em
suas tribos de origem. Osório identificou dois tipos delas: alguns com “verrugas
no queixo, na ponta do nariz e sobre este à testa formavam uma cruz”, e outros
da etnia “Monjolo” que “em vez dessas saliências, apresentavam cicatrizes nas
duas faces, da boca às orelhas, paralelas retas, feitas à faca”.
Dando vozes a Mãe Mina, Policarpo
Balbino, Venância, Júlia, Alexandre, Mãe Tória, Felipe, Antônio e Rita Bagagem,
Osório registrou histórias que transparecem a violência da imposição da fé
dogmática, do castigo, da vil separação de mães e filhos e de escravizadas que
passavam a vida procurando seus bebês. Mostrou mais, que após a Abolição muitos
ex-escravizados foram morar no bairro periférico de Barretos, o “Outro Mundo”,
levando a vida na informalidade e na pobreza.
É triste, mas é a nossa realidade.
Nossa. Somos a sucessão daquele passado, que é longe de ser um lugar bonito.
(Rita Bagagem, quando menina, entrou por curiosidade num navio negreiro e não
conseguiu mais sair. Dá para acreditar?).
ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 11 DE MAIO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS
É outono. Segundo a fábula do
escritor La Fontaine, recontada no século XVII depois da versão original do
grego Esopo, a cigarra canta no verão, enquanto as disciplinadas formigas
trabalham para garantir uma boa passagem no inverno. Essa fábula, imersa na
lógica capitalista, eternizou a figura da cigarra como preguiçosa, já que, ao
invés de trabalhar como as incansáveis formigas, ela (só) cantava em cima das
árvores e quando chegou o inverno ela correu a pedir abrigo às trabalhadoras.
Dada a distância do tempo e da mentalidade, essa versão começou a ruir, visto
que o canto das cigarras passou a ser considerado uma forma de trabalho, de
entretenimento e de arte. Era a cigarra que trazia a alegria ao verão, era de
sua natureza cantar e encantar.
O fato é que cigarra é cigarra, e
formiga é formiga. A natureza delas é diferente, e não há de se esperar de
ambas uma atitude em comum. O mundo precisa do (en)canto das cigarras e La
Fontaine sabia disso. Não só ele. Coelho Netto, escritor maranhense, ao visitar
Barretos em 1920, deixou registrado no livro de visitantes do Grêmio que a casa
gremista era uma “árvore de sombra amena” onde os homens, depois de um dia de
trabalho, podiam recolher-se e lá ouvir o canto das cigarras. Poetizou, ainda
mais, dizendo que as cigarras “eram os poetas que cantavam nas folhas dos
livros”.
Exatos cem anos depois, em 2020, nas
comemorações dos 110 anos do Grêmio, eu, historiadora, voltei à mensagem de
Coelho Netto, despindo dela a fábula do francês La Fontaine, para me inspirar e
dali escrever meu livro “De onde cantam as cigarras”. O livro que analisa a
origem do Grêmio em 1910 e a maneira como ele se tornou uma instituição de
tradição em 1945, se cruza com a história cultural da cidade.
No ano passado, a pandemia não
permitiu o lançamento presencial, e, em 2021, a mesma situação exige medidas
restritivas para a noite de autógrafos que acontecerá no dia 12. No entanto, as
cigarras precisam cantar, mesmo que seja outono e que seu canto esteja um tanto
escondido pela máscara. Afinal, o verão se aproxima.
ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 4 DE MAIO DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS
Que me desculpe Silvestre deu Lima e
a sua perspicaz intelectualidade, que me perdoe a sagacidade do Cel. Almeida
Pinto e que não me ouça o Cel. Jesuíno de Mello, nem o juiz Joaquim Fernando de
Barros – todos viventes em Barretos e donos de uma poderosa escrita - mas,
quando me pedem para eleger um ilustre intelectual na história da cidade, meus
dedos correm a digitar: Jorge Andrade, barretense. Não por acaso, na virada do
mês de maio, lembrei-me dele, de sua figura junto à máquina de escrever, já que
no dia 21 ele completaria 99 anos. A mim, maio profetiza Jorge Andrade.
Não consegui esperar o dia 21,
precisei correr às teclas para lembrar a todos os 99 de Jorge. Ano que vem, em
seu centenário, ele certamente receberá as mais justas e belas homenagens, mas
quis me adiantar. Alguém que sai da aristocracia interiorana, entra à
dramaturgia depois ter sido aconselhado pela diva Cacilda Becker e que teve sua
primeira peça como marco inicial na carreira da (também diva) atriz Fernanda
Montenegro, merece ser lembrado e reverenciado.
A sensibilidade de Jorge Andrade é
traduzida em seus textos através de uma crítica social certeira, que de maneira
inteligente denunciava as questões sociais e políticas de um Brasil
interiorano, esquecido e renegado. A tríade “A Moratória”, “Veredas da Salvação”
e “Pedreiras das Almas” é um retrato da História do Brasil, em complexas fases,
a ponto da composição dos personagens, a movimentação das cenas e o texto
sincero ser confundido com a própria realidade do que de fato aconteceu. Para
um historiador, é nítido o quanto Jorge conhecia profunda e criticamente o
passado brasileiro a ponto de exprimir uma dramaturgia que grita, que não desmerece
a inteligência de quem assiste, ao contrário, eleva à reflexão a assuntos
superiores.
O texto de Jorge nos convida ao
conhecimento do que (e o porquê) os brasileiros nunca conseguiram ser. Sua
máquina datilográfica parece ainda ressoar, é atemporal. Enquanto Barretos existir,
Jorge será lembrado. Viva os seus 99!
ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O DIÁRIO DE BARRETOS" EM 27 DE ABRIL DE 2021 (página 2) PELA PROFª KARLA ARMANI MEDEIROS
Os jornais e livros antigos sobre
Barretos revelam muito mais do que aparentam; deixam escapar desabafos e
indignações. Neles, uma característica sempre me chamou a atenção: o uso das
expressões “mentalidade bovina”, “bovinismo” e “mentalidade de cimento armado”.
A última foi grafada, em tom de desabafo, pelo escritor Osório Rocha em seu
“Barretos de Outrora”, e a primeira encontra-se em algumas edições da imprensa,
especialmente o “Correio de Barretos”.
A
tal “mentalidade bovina” é uma inteligente metáfora usada para descrever o
conservadorismo de certas classes barretenses – em principal, parte de uma
poderosa elite – que, avessas às mudanças, engessavam processos que poderiam
trazer novidades, modernidade e abalar a ordem social. A intenção dos adeptos
ao bovinismo, portanto, era não apoiar iniciativas “ousadas” em nome de
moralismo (ou de nada).
Como exemplo, dois episódios
interessantes denunciam a tal mentalidade bovina, ambos envolvendo a Educação
em Barretos. O primeiro, em 1931, a partir da criação do Ginásio Municipal de
Barretos, cuja instalação foi encabeçada por Osório Rocha com a “Sociedade
Escolas de Barretos”. Na época, existiram figurões que foram contrários à
criação da primeira escola secundária de Barretos; para eles, quem quisesse
estudar depois do 4º ano, a opção seria Bebedouro. Em situação parecida,
pulando para 1964, a origem da Fundação Educacional de Barretos, a primeira
instituição de ensino superior na cidade, também passou intemperes do bovinismo
(somado a rivalidades políticas), que achava desnecessária e impossível a vinda
de professores de “tão longe”.
Tratando-se de Barretos, a tal
mentalidade foi denominada “bovina” em alusão à pecuária e ao gado tangido,
imortalizando uma característica da nossa própria origem. O problema foi a
perpetuação dessa mentalidade ao longo das décadas e, pior, na contramão das
ações intelectuais modernas e de projetos tão sólidos como a Educação. E não é
de se espantar que ela ainda apareça por aqui. Habemus.