Relatos de viajantes sobre lugares desconhecidos sempre foi um costume muito usado ao longo da história do Brasil, um exemplo clássico é a carta de Pero Vaz de Caminha que, por meio de suas impressões como viajante, informou o Rei de Portugal sobre o “novo mundo” que avistara frente ao Atlântico. Dentre outros exemplos, o que sempre ficou para a história foram as impressões que pessoas “de fora” tinham sobre lugares pouco explorados, pois, com seus olhos estranhos, elas escreviam relatos com detalhes e ainda comparavam com a realidade em que viviam. Assim, os registros de visitantes são os mais preservados no Brasil, talvez porque são considerados ilustres, e historiadores utilizam-nos com frequência para descongelar o passado.
Isso não foi diferente no hospital da vida. A Santa Casa de Misericórdia de Barretos, desde o ano de sua fundação, 1921, guarda o Livro de Visitantes, que, em suas páginas amareladas pelo tempo, retrata os noventa anos de acolhimento à cidade de Barretos e região. É certo que, muitas vezes, estas impressões podem ser apenas observações superficiais, ou seja, relatos que não especificam a real situação do hospital. No entanto, certas impressões fornecem informações preciosas sobre o funcionamento do hospital, a composição do corpo clínico, o tipo de público atendido e principalmente as disposições dos cômodos do antigo prédio. Além disso, as personalidades que visitaram a instituição também são fontes de estudo para entender as relações políticas e sociais que vigoravam em determinadas épocas.
Com o termo de abertura assinado pelo punho do primeiro provedor, Pedro Paulo de Souza Nogueira, o livro se inicia com as palavras do escritor maranhense Coelho Netto, o qual é citado até o fim do livro por assim dizer: “prouvera a Deus que esta casa de piedade christan, levantada pela generosidade dos corações, estivesse sempre vazia”. A religiosidade é muito presente nas citações dos visitantes, sendo que, muito destes, padres e arcebispos da região, ressaltaram o trabalho das Irmãs Franciscanas, as quais desde a origem do estabelecimento, se comprometeram com a caridade aos doentes. “Caridade”, esta é a palavra mais citada entre os pensadores, poetas, jornalistas, magistrados, médicos, autoridades e políticos que visitaram o hospital nas décadas de 20 e 30.
Entre tantas inscrições dos ilustres visitantes, saltam os olhos a assinatura de Andradina de Andrade e Oliveira, que, já na primeira página encanta com suas sutis palavras a iniciativa dos barretenses em fundar um nosocômio. Sua biografia ainda não foi revelada, mas, segundo possíveis evidências, Andradina era escritora do Rio-Grande do Sul, uma brilhante atração da literatura do século XX e, sem dúvidas, uma honrosa visita à Santa Casa da pequena Barretos da época. Outra visita de cunho expressivo foi a de Silvestre de Lima, o segundo Intendente Municipal de Barretos, poeta parnasiano, propagandista da República e da Abolição, que foi embora da pacata cidade no fim da década de 10 e em 1929 visitou o hospital, ocasião em que deixou suas poéticas impressões. Tão poéticas quanto os versos do famoso Martins Fontes que em 1922 recitou no livro:
“O entusiasmo me abrasa,
Quando penso em minha terra:
Bendita seja esta casa,
Pela bondade que encerra”.
Os registros dos primeiros anos de vida do hospital são um tanto parecidos, afinal, muitos deles elogiaram a iniciativa dos fundadores da instituição, o trabalho das respectivas provedorias e a atuação do sério corpo clínico. Ainda mais, relatavam sobre o quão importante foi o gesto de fundar um estabelecimento hospitalar em Barretos, eles assim consideravam um ato “civilizatório”. Nesse sentido, os mesmos visitantes ressaltaram os recursos inovadores de instalação do prédio, em principal a sala de cirurgia, como disse Antonio A Lobo. em 1922: “a sala de operações é modelar, tão bem assintada como as melhores que conheço, a começar pelas da capital”. Além disso, o recado do visitante Dr. Oscar e Oliveira Lisbôa demonstra outros detalhes como: a curta situação financeira da Santa Casa e o “rigoroso asseio, destruição dos detritos e dos materiais cirúrgicos servidos, os esgotos com sifões seguros e descargas completas, o abastecimento da água abundante”.
Ainda sobre a estrutura do prédio, as principais informações foram retiradas do projeto arquitetônico da Santa Casa de Barretos, feito em 1918 pelo engenheiro Dácio de Moraes, tendo como construtor Pagani Fioravanti. Neste projeto são visíveis todas as supostas instalações do primeiro prédio do hospital, tais como: enfermaria masculina e feminina, rouparias, salas de banho, dispensa, cozinha, seis banheiros, sala dos médicos, consultório, vestíbulo, farmácia, administração, sala de curativos, sala de enfermeiros, sala de operação e arsenal. Estes são alguns itens que aparecem no projeto, entretanto, as impressões de Antonio A. Lobo mostram que o prédio, quando instalado, ainda não contava com todas as dependências, tinha uma ala acabada e ocupada por doentes e a outra ainda estava por acabar.
Dentre tantas palavras de elogios encontram-se as impressões do magistrado Randolpho de Campos, que, escritas em 1924 vão além das poesias. Randolpho caiu no Central Hotel e quebrou o braço, por isso, na condição de visitante e paciente ele descreve o atendimento do hospital e ressalta aqueles que não tinham aparecido até então: os funcionários e os pacientes. Sem dúvidas, suas palavras originais são melhores do que quaisquer outras:
“[...] deparei-me a primeira vista com um quadro que me absorveu toda a atenção: um pobre velho, surdo e mudo, que dias antes caira ali junto as rodas da locomotiva, que, por pouco, lhe não deixa seus pés, arrastava-se através de longo alpendre vergando pelos anos e pelas dores; num banco de outro alpendre duas rapariguinhas com as pernas em ataduras a ocultar-lhes as chagas, queixavam-se mutuamente as dores, no colóquio característico de ingênuas e rusticas camponesas; num recanto além, uma mulher demente, em desalinho, a chorar como uma criança, recalcitando contra as ordens que lhes eram dadas e, ali num leito de vasta enfermaria, um esqueleto de jovem de 20 anos, no rosto ainda mostrando o frescor da idade, na clausura cruel da paralisia geral, a gemer, a gritar... Seguiu-se a minha observação uma enfiada de miseráveis, acometidos de moléstias varias, em leitos limpos e bem dispostos. A cada canto se respirava uma fresca a suave atmosfera de conforto e de carinhos, o que tudo me fez sentir, que, na verdade, estava dentro de uma casa de caridade, que não poude ficar vazia como o desejara Coelho Netto, mas que enriqueceu de bênçãos e de benefícios para os que a encham de sofrimentos. Por minha vez, alojei-me, confortavelmente, num quarto na parte do nascente, com boa cama, excelente água esterilizada, bastante ar e luz, onde os raios solares penetravam benefícios. Logo pela manha, ás sete horas, invariavelmente, entrava-me pelo quarto o criado, o bom e sempre alegre Bertholino, a perguntar-me como passava a noite e a depositar-me sobre a mesinha do alvo lavatório toillete o delecioso café aromático e quente, pão e manteiga. Desde as seis horas, por mim, já me achava de pé, a respirar pela ampla janela o ar fresco da manha, a aliviar o braço das torturas que a cama lhe causava. As noites pareciam-me assim, longas, longas e eu as procurava encurtar a perandar e a ler ali no salão contiguo, até que forte [...] pudesse vencer os receios de dormir e magoar a parte doente. Entretanto, durante dezoito dias de estadia na Santa Casa, senti-me sempre forte e bem disposto e de espírito, não já pelos bons cuidados médicos, mas tanto em pela boa e sadia alimentação, que me era proporcionada e ainda mais pela solicitude com que era cercado de cuidados e de afetuosa consideração por parte dos enfermeiros e criado de quarto – e não foi assim, sem saudades, que deixei a vida hospitalar, uma vez que me sentia em vias de completo restabelecimento graças à habilidade medica e dedicação do Dr. Bastos. [...]”.
Relatos como este transcorreram as páginas do Livro de Visitantes e ajuda-nos a entender as condições estruturais e a sociabilidade do hospital. As décadas passavam e o hospital recebia visitas cada vez mais interessantes, como os cônsules gerais da Itália e de Portugal, os quais no ano de 1939, isto é, no início da Segunda Guerra Mundial, visitaram a Santa Casa de Barretos anotando seus recados e marcando suas personalidades nacionalistas. Representantes do consulado japonês também escreveram suas mensagens, trata-se de uma página interessantíssima do livro já que os mesmos escreveram as mensagens em sua própria língua.
Quanto mais anos se passavam, mais referências a novas construções do hospital eram escritas, o livro de visitantes acompanhou notadamente as principais fases do hospital da vida. Por exemplo, a década de 50 se inicia com referências à construção da tão esperada maternidade, que vinha a se concretizar em 1955. Os períodos que se seguem sempre engrandecem a possibilidade da construção de novos pavilhões, fato que gradativamente aconteceu em 1967 e 1988. Outras conquistas também são vistas com a comemoração dos visitantes por conta da inauguração da CTI e, tempos depois, dos equipamentos de investigação clínica cardiológica, inaugurados com a presença do respeitado dr. Zerbini que, em 1991, escreveu do próprio punho: “o início de uma nova era de atualização neste nosocômio”.
Por fim, de rascunhos feitos de caneta de pena à esferográfica, o livro de visitantes da Santa Casa de Misericórdia de Barretos conta com a assinatura de mais de cem pessoas que visitaram o hospital e, com suas palavras contraditoriamente sérias e poéticas, permitiram com que a nossa imaginação conseguisse desenhar parte do cenário do hospital a partir do momento de sua fundação e suas transformações ao longo de sua linha do tempo.
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