ARTIGO PUBLICADO POR KARLA O. ARMANI NA REVISTA "AÇÃO E VIDA" DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE BARRETOS - 9/1/2011
Solange Galvão, viúva do dr. Francolino Galvão de Souza, guarda em sua rica memória os melhores momentos da vida do médico baiano que fez a primeira cesariana da história da Santa Casa de Barretos. Uma ocasião especial que foi contada passo a passo em uma entrevista emocionante.
“O médico luta com o inevitável que é a morte, nem sempre compreendido pelo povo e se o coração lhe dói pela injustiça deste, é no seio daqueles que lhe compreendem que ele vai achar consolo”
(Dr. Francolino Galvão de Souza em discurso, 1943).
Em 1900, no interior da Bahia, nasceu Francolino Galvão de Souza, filho do fazendeiro e comerciante Feliciano José de Souza e de Odilia Galvão de Souza. A família Galvão morava na Fazenda “Cana Brava” e desde muito cedo Francolino sonhava em ser médico, o exemplo vinha dos filhos de fazendeiros vizinhos que eram estudantes de Medicina e que muitas vezes saiam às pressas para atender chamados distantes de outras fazendas, enfrentando duras viagens a cavalo. Com a morte prematura do pai, a mãe tomava conta de tudo na fazenda, o irmão mais velho engajara-se na vocação sacerdotal e Francolino, depois de tanto ajudar a mãe na fazenda, foi estudar aos 17 anos.
Iniciou os estudos na Faculdade de Medicina da Bahia e fazia ao mesmo tempo os cursos de Farmácia e Medicina, “lá permanecia o ano inteiro voltando para a casa somente no final do ano para as férias”, disse Solange. Os três últimos anos de Medicina, Francolino cursou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, localizada na Praia Vermelha, em Botafogo. Formado em 1929, com especialização em Ginecologia e Obstetrícia, Francolino ficou no Rio de Janeiro e passava temporadas com frequência na Bahia, um Estado que vivia ameaçado pelo Cangaço na época, “ele fez trabalhos muito expressivos lá na Bahia, no interior, partos dificílimos sem recurso nenhum”, lembrou a esposa. Em 1930, o médico recém-formado concluía sua tese de doutoramento: “Contribuição ao estudo da Symphyseotomia de Zarate”, tratava-se de uma dissertação que estudava um novo procedimento de parto da época.
De volta à capital federal, o Rio de Janeiro, Francolino recebeu um convite que mudou para sempre sua história e de uma maneira interessante o trouxe até Barretos. Seu amigo, também baiano, o pecuarista Plínio Umburanas, o convidou para caçar numa fazenda que ele havia adquirido nas margens do Rio Grande, num lugar chamado “Viadinho do Porto”, hoje Riolândia. Por conta da caça, o esporte predileto dos amigos baianos, eles se aventuraram em uma viagem num Ford 1929, “ele e o Plínio vieram os dois do Rio de Janeiro, não sei quantos dias levaram de viagem, eu sei que aconteceram coisas assim... espetaculares, interessantíssimas! Você já pensou, em 1933, o que significava fazer uma viagem desta?”, salientou Solange sorridente.
Chegando primeiro em Barretos, Francolino dizia que quando ele e seu amigo desceram do Ford estavam na Praça Francisco Barreto e o relógio batia doze badaladas, era meia-noite do dia 16 de agosto de 1933. Logo se instalaram no Hotel São José e dias depois seguiram rumo a Riolândia, onde ficaram até janeiro do outro ano caçando. Depois disto, voltaram a Barretos e neste período aconteceu um dos momentos marcantes da vida de Francolino, agora conhecido por dr. Galvão, o médico baiano que acabou por conquistar Barretos.
Era 31 de janeiro de 1934 quando uma mãe, de 35 anos de idade, entrou em um difícil trabalho de parto na Santa Casa de Misericórdia de Barretos. Segundo as palavras de Solange, “a mulher estava em trabalho de parto já demorava algum tempo sem êxito no nascimento, embora assistida por três médicos...”. Com tantas complicações, o pai da criança, um distinto professor em Barretos, recebeu informações a respeito de um médico baiano que se encontrava na cidade e que poderia oferecer assistência à parturiente. Quando o pai encontrou o tal médico e lhe explicou a situação, o dr. Galvão lhe disse que não poderia atender sua esposa pois ela já estava sendo assistida, mas que se os médicos o chamassem ele iria. Foi quando o pai convenceu os médicos a pedirem assistência ao colega baiano especializado em obstetrícia, e o mesmo observando o caso disse: “ – Aqui pode ser feita uma cesariana que salva mãe e filho”.
Esta ideia causou estranheza entre os presentes, já que ninguém tinha feito tal procedimento no hospital ainda, mas o pai confiou no dr. Galvão e este não falhou. Ao contrário, ele fez a cesariana e, de acordo com as evidências, estava presente o sr. Ruy Menezes, que presenciou a cena de felicidade do pai, o qual, aos gritos nos corredores do hospital, exclamava: “- Este vai se chamar Renato, renascido, nasceu duas vezes!”. Desta forma, depois de tamanho momento de tensão, dr. Galvão ficou conhecido por todos e “foi aquela bomba na cidade... todo mundo queria ver o doutor que tinha tirado o menino pela barriga!”, recorda Solange.
De fato, no livro de pacientes da Santa Casa consta o registro nº 6940 como um “parto-sesariana” (grafia da época) feito pelo dr. Galvão no final do mês de janeiro de 1934. Além disso, em ata de reunião da Mesa Administrativa, o diretor clínico da época, dr. Urbano de Britto, convidou o dr. Galvão para integrar-se ao Corpo Clínico da Santa Casa. Em outras palavras, a repercussão e o sucesso da primeira cesariana foram tão grandes que o dr. Galvão tornou-se médico do hospital, sendo seu primeiro cargo “Médico da Enfermaria Anglo”.
No ano de 1949, dr. Galvão era o diretor clínico do hospital, ocasião em que se dedicou, dentre muitas conquistas, à compra de aparelhos de anestesia e camas para pacientes operados. Na década de 60, por sua fama de bom humorista, pois costumava contar piadas às parturientes para descontrair o ambiente, dr. Galvão foi convidado a representar Barretos no Programa “Cidade contra Cidade” do apresentador Silvio Santos, com a função de contar piadas, visando a obtenção de uma ambulância para a Santa Casa de Barretos. Então, dr. Galvão marcou ponto contra o representante de Pindamonhangaba e foi muito aplaudido e bem recebido pelos barretenses, que se sentiram merecidamente representados pelo médico que, além de ter contado piadas, também recitou belas poesias humorísticas.
Ao longo da trajetória do dr. Galvão no hospital, sua esposa lembra com atenção das melhorias e novidades que ele trouxe à Santa Casa: “ele introduziu muitos melhoramentos na Santa Casa, como a prática do Credé que consistia em pingar gotas de nitrato de prata no olho do recém-nascido como profilaxia à cegueira e aquelas camas flexíveis ‘Leito de Fauler’. Também foi trabalho dele a substituição do clorofórmio na anestesia por técnicas mais modernas”. Dr. Galvão aposentou-se na década de 70, mas continuou a frequentar a Santa Casa por muito tempo.
Por fim, a vida do dr. Galvão é uma das muitas que se eternizaram na memória da Santa Casa de Barretos. Médico, pai de seis filhos, esposo, membro de várias associações em Barretos, criador de pássaros, incentivador da arte e admirador de Castro Alves, por tantas faces de uma mesma personalidade, se pudéssemos resumi-las em uma frase, seria o que ele sempre dizia e que sua esposa repete com os olhos brilhantes de emoção: “Quantas mães deram a vida para salvar os filhos... o que é o parto na vida de uma mulher! Quantas que deram a vida, que perderam a vida... Mas não perderam a vida, foram elevadas aos céus, porque quem doa a vida pelos outros só tem um lugar: a glória dos céus”.
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